Existe uma teoria acadêmica que surgiu nos anos 80 chamada interseccionalidade. A expressão foi cunhada pela feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw em referência às especificidades da situação das mulheres negras, para quem patriarquismo e racismo interseccionam e compõem uma situação mais opressiva do que a de mulheres brancas. O conceito aqui se aplica como uma luva e é claro: duas formas de opressão se encontram no corpo da mulher negra, se reforçando e potencializando.
A interseccionalidade é uma metáfora gráfica que pode ser muito útil nos casos onde ela realmente existe. O problema é que muitos conceitos acadêmicos se tornam populares e acabam sendo banalizados pela aplicação equivocada, um problema amplificado nas redes sociais. Esse é o caso da interseccionalidade no caso do veganismo, que eu vejo como uma confusão desnecessária para um movimento cujo objetivo é de um teor imensamente mais utópico dos que os movimentos de justiça para humanos.
Antes é preciso esclarecer: criticar o uso do conceito de interseccionalidade usado onde ele não se aplica não é criticar os movimentos sociais tipicamente apoiados por ‘interseccionalistas’, como feminismo, direitos gays, lésbicos e trans, direitos de ‘minorias’ étnicas e por aí vai. Eu sou vegano e apoio todas essas causas. Mas o fato de eu apoiar movimentos que trabalham para acabar com essas formas de opressão não quer dizer que elas magicamente intersectem como o especismo, a forma de opressão que o veganismo tenta erradicar. Essas formas de opressão correm paralelas uma à outra. O fato de eu ser simpático a uma causa e a apoiar com conteúdo em redes sociais não quer dizer que eu seja um ativista dessa causa. Quer dizer apenas que eu sou uma pessoa com sensibilidade e um senso de justiça.
Em geral os interseccionalistas veganos confundem a dificuldade de certos grupos sociais de terem acesso ao veganismo por razões econômicas e culturais com um motivo para adotarem a interseccionalidade. Esse é realmente um problema, mas é um problema do animal humano e não dos animais não-humanos, que são os beneficiários do veganismo. A dificuldade de ser vegano neste caso não tem nada a ver com especismo — ou quem sabe tenha e a dificuldade econômica/cultural é usada como desculpa?
A melhor forma de aproveitar a interseccionalidade em educação vegana é lembrar que nenhuma campanha pelos animais pode conter elementos de racismo, homofobia e sexismo — porque isso nos faz hipócritas e incoerentes. Da mesma forma, outros movimentos sociais são hipócritas e incoerentes quando eles acham que é racismo, sexismo e antissemitismo se compararmos, por exemplo, a exploração das vacas à das mulheres, ou usamos os termos “escravidão” e “holocausto” para designar a exploração animal. Essa tomada de ofensa é uma manifestação de especismo. O fato de uma pessoa pertencer a um ‘grupo oprimido’ não quer dizer que ela sempre tem razão.
Assim como a maioria dos ativistas de movimentos sociais não são veganos, e portanto, são incoerentes, os veganos também tem direito a essa falibilidade, que é natural do ser humano. Se um ativista vegano cometer um deslize sexista ou racista, ele deve ser criticado por isso. Mas isso faz o seu veganismo menos potente e sincero do que um vegano que se considera interseccionalmente correto? De forma alguma. Uma coisa não cancela a outra, porque, se assim fosse, todos os movimentos sociais não teriam alcançado nada porque todos são culpados disso.
Para concluir, eu reitero que minha crítica aqui não é a nenhum movimento social mas sim ao uso incorreto do conceito de interseccionalidade, que eu vejo como um diluidor do movimento vegano. Eu escolhi trabalhar pela abolição animal e não preciso justificar isso para o mundo com uma postura assumidamente interseccional para explicar para os especistas que eu ‘sou vegano mas gosto de gente também’. Não seria essa atitude uma forma de antropocentrismo internalizada?
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