Muitas vezes um livro nos encontra. Há pouco tempo eu vasculhava um sebo de livros quando um pequeno ítem, uma edição antiga da editora Penguin, me chamou a atenção. Trata-se de Niki, A História de Um Cão.
O título, claro, foi o que atraiu meu olhar vegano porque eu sei que a literatura e o cinema parecem, em geral, ignorar o vasto universo não-humano que poderia servir de material para muitos autores. Sendo assim, comprei o livro que parecia ser uma exceção.
O título, claro, foi o que atraiu meu olhar vegano porque eu sei que a literatura e o cinema parecem, em geral, ignorar o vasto universo não-humano que poderia servir de material para muitos autores. Sendo assim, comprei o livro que parecia ser uma exceção.
No último fim de semana finalmente eu li o livro e tive uma experiência literária da mais fina qualidade. Bem, o livro é de autoria do autor húngaro Tibor Déry, considerado o ‘Thomas Mann da Hungria’. Membro do partido comunista do seu país durante anos, em 1953 ele foi expulso por causa de sua crítica de suas políticas cada vez mais repressivas (essa narrativa soa familiar, certo?). Ele apoiou o governo reformista de Imre Nagy e depois que a União Soviética conseguiu reprimir a revolta de 1956, ele foi posto na cadeia por nove anos. Ele saiu em 1960 graças a intervenção de escritores como Alberto Moravia, Albert Camus, Sartre, E. M. Forster e Rebecca West.
O livro em questão foi publicado em 1956 e é uma crítica da experiência de repressão sofrida por Tibor. O cão é símbolo e sujeito ao mesmo tempo. Ele é símbolo de sentimento, da lealdade e do amor mais puro que nenhum regime inventado por seres humanos pode calar. Mas ao mesmo tempo a cadela protagonista, Niki, é um sujeito. Tibor usa da tradição do realismo psicológico europeu de uma maneira tão proficiente e elegante que eu fiquei com a impressão que eu conheci essa cadela e brinquei com ela nas margens do Danúbio.
Niki entra na vida de um casal de meia idade, os Ancsas, quando eles estão vivendo em um subúrbio rural de Budapeste, esperando pelo seu apartamento na cidade. O Sr. Ancsa é um engenheiro de minas, um homem afetuoso e sensível cujo filho morreu na Segunda Guerra. O casal vive, assim, em um estado de amargura permanente, embora resignados.
Niki injeta alegria e vitalidade em suas vidas; seus movimentos e sentimentos são descritos minuciosamente. O universo canino é capturado em palavras tão precisas que o leitor somente pode concluir que Tibor era um admirador profundo dos cães. De fato, de todos os animais, já que ele faz referência a vários, embora esse livro não se trata de um documento que poderia ser reclamado pela teoria dos direitos animais, como os livros de outro autor judeu, Isaac Bashevis, podem ser. Existe inclusive referência ao consumo de carne de galinhas, mas nota-se nas entrelinhas uma certa ironia e espírito crítico nessas referências ao carnismo.
Eu não conheço a fundo a biografia íntima de Tibor para dar mais detalhes sobre o que ele realmente sentia em relação a exploração de animais como comida.
O casal finalmente muda-se para Budapeste, o que foi um choque para Nikia, cuja alma era ‘anti-urbana’. Mas ela se adapta na medida do possível. O Sr. Ancsa perde o emprego e passa mais tempo com ela; consegue um outro emprego inferior e volta a ficar ocupado e finalmente desaparece. A Sra. Ancsa se desespera e passar a viver em um estado ansioso sem conseguir informação sobre seu marido que ele tanto ama.
Esposa e cachorra passam a existir em uma espécie de vácuo. O retrato da Sra. Ancsa é também uma obra prima; uma mulher extremante ponderada, justa, vivendo uma situação sem sentido e até perigosa mas mantendo sua fidelidade à sua cadela adotada. Apesar dos esforços de sua guardiã, Niki aos poucos sucumbe ao peso da tristeza imposta por um sistema onde o indivíduo não importa; onde o afeto é visto como fraqueza ou um traço burguês. A estória fica triste mas cada vez mais rica em poesia e percepções da natureza humana e canina.
A prosa de Tibor flui como uma peça orquestral bem executada; o ritmo e as palavras evocam a geografia e psicologia de uma maneira simples, elegante e muito precisa. Assim como em uma orquestra, a vida interior de Niki vai tomando precisões maiores, em um verdadeiro crescendo.
Niki é a heroína da história, o antídoto da falta de moral e emoção do universo humano que a cerca, um canal de sentimentos e esperança. Mas por fim nem ela é imune a banalidade da tirania, que em seu totalitarismo, atinge homem, animal e natureza. Niki é, realmente, inesquecível.
Nota: felizmente esse livro se encontra em português e por um preço bom no Estante Virtual. Eu recomendo a leitura tanto pelo tema quanto pelo simples prazer estético de ler um livro de um dos grandes estilistas literários do século XX.
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