6 de mar. de 2009

Quem precisa de tradição? Em alguns casos, apenas políticos canalhas

A palavra tradição pode soar como algo pitoresco e benigno, mas vamos ser sincero, ela realmente cria uma ponte emocional entre o passado e o presente, como uma espécie de fio condutor que transmite através de gerações o espírito de uma cultura? Isso é altamente questionável tanto em termos de função quanto em termos de valor. O grande cineasta espanhol Luis Bunuel, em sua autobiografia publicada um pouco antes de sua morte em 1982 e entitulada O Último Suspiro disse que não suportava manifestações folclóricas e as descreveu como as ‘expressões mais grosseiras de uma cultura’. Como Espanhol, Bunuel sabia que folclore havia se tornado algo museificado para agradar turistas em busca do cliché; no seu olhar inovador e iconoclasta, não havia nada mais sem vida do que a repetição de rituais que sobrevivem sem alma, como espíritos vagantes que se recusam a desencarnar, defuntos maqueado para as lentes. O caso das touradas na Espanha é um exemplo clássico de uma tradição que faz vudu com o ímpeto modernista do país.



No Brasil, a farra do boi em Santa Catarina é defendida por alguns em nome da tradição. Originária da Ilha de Açores, ela provavelmente veio da Península Ibérica onde talvez esse espetáculo sanguinolento representasse uma lembrança pálida do gladiadorismo romano que teimou em sobreviver nessa parte remota do império. E aonde os ibéricos foram, a violência contra taurinos foi junto, inclusive para Goa, colonizada pelos portugueses, onde ela se chama "dhirio’, e felizmente é proibida desde 1998. No caso do ‘dhirio’, o ‘espetáculo’ é centrado no combate entre dois touros, que tem seus rabos untados para garantir a sua agressividade. Os animais lutam com os chifres em pontas até que um deles, normalmente ferido, cede face à investida do adversário. "Os animais sofrem. Normalmente dão-lhes uma dieta pouco saudável e enchem-nos de álcool, antes do combate. Costumam ficar logo feridos pelas chifradas", diz Anuradha Sawhney, representante da PETA na Índia.



Agora membros de um partido populista em Goa, o Partido do Congresso, querem tirar o dhirio da clandestinidade, em uma campanha liderada pelo deputado Francisco Sardinha. Como a farra do boi no sul do Brasil, a coisa continua acontecendo na ilegalidade, graças a políticos em busca de votos através da ferramenta mais baixa que existe à sua disposição: promover a catarse coletiva às custas do sangue alheio, possibilitando ao povo enganado a chance de afogar suas mágoas de gente roubada e oprimida através da opressão de outros seres ainda mais vulneráveis e assim perpetuar um ciclo de engodo, corrupção, opressão e violência. Para disfarçar toda essa bandalheira, nada mais útil do que se apelar para a mítica ‘tradição’.



Já notaram que muitos daqueles que levantam a bandeira da tradição tem interesses econômicos provenientes de sua manutenção, por mais absurda que ela seja? Frequentemente, ela é usada como escudo para impedir avanço social e infelizmente muita gente cai no golpe desse discurso manipulador. Não que toda tradição seja ruim mas o simples fato de uma coisa ser considerada ‘tradicional’ por alguns não significa que ela tenha que ser mantida. A história é cíclica e quando um ciclo chega ao fim, devemos enterrá-lo para sempre, dizer tiau e benção, vaya con dios, senão corremos o risco de ficar presos ao passado, ignorar o presente e bloquear a evolução ética da sociedade. A imaginação romântica tende a pintar o passado com tons cor de rosa, convenientemente ignorando que em muitas situações o passado era muito pior do que o presente. Talvez isso venha da natureza pessimista do ser humano, nostálgico pelo tempo que ficou para trás, temeroso pelo que vem e hostil ao único tempo que realmente existe, o presente. E esse não mais comporta manifestações violentas e vulgares como farra do boi, dhirio, touradas e qualquer outra forma de exploração animal; no caso dos taurinos, disfarçes hipócritas para aquela que é a mais arraigada das tradições: a corrupção política.

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